domingo, 23 de novembro de 2008

Mais cultura!!! Só não sei de quem é. Mas é coisa boa. Textos ótimos.
http://cat777frombeyond.blogspot.com/2008/09/cio-criativismo.html



Esse blog é fantástico. A autora escreve muito, me lembra a Clarice Lispector num de seus instantes de estupor.
É a Clarah Averbuck. Engraçado, por que pessoas tatuadas são mais interessantes???



domingo, 6 de janeiro de 2008

As coisas como elas deveriam ser...

Estou agarrado num livro. Pretendo publicá-lo, contudo, as editoras cobram muito e, para piorar, não tenho como divulgá-lo. Enfim, estou numa enrascada: se eu não escrever, enlouqueço. Tenho umas páginas concluídas, o personagem e o roteiro também já estão bem definidos. Minha inspiração foi a vida, a coisa mais estranha que pratico nessa existência, a vida. O episódio das três amigas espelham um pouco a idéia central do livro, contudo, acho que ele será bem mais ácido. O ingrediente básico é o existencialismo moderno, o sentimento "humano", o mundo. Vou postando aqui alguns desabafos, pequenos trechos do dia-a-dia, criando um painel.

Episódios do Nirvana

São três amigas. Três mentes perversas, adequadas ao dia-a-dia. Três insanas moças de uma classe social indistingüível, num planeta qualquer, numa situação corriqueira. Qualquer um pode ser a vítima. Qualquer um mesmo!!!!

****
Carol, Paty e Verônica marcam um encontro na boate da zona leste. Um inferninho onde as pessoas pulam, gritam e se exibem em danças espontâneas. O trio, marcado pelo excesso de batom vermelho e tiras de couro, agendou um “dancing” pra queimar as calorias da semana. É sábado e a rua está carregada. Os carros lotam as ruelas e as vias principais são praticamente intransitáveis. Carol está sozinha, Paty perdeu seus contatos no celular e Verônica é pura tpm. Mesmo assim, combinam às 11:45, perto do Restaurante do Boi Doido. Carol, diferente das amigas, esbanja o seu perfume cítrico pelos corredores do cortiço em que mora, diferentemente das outras duas, calça bota vermelha com tiras amarelas, abusa da profusão de cores na formatação da sua mini-saia jeans. Fecha a porta do seu pequeno apartamento, escolhe um cigarro no maço escuro, ajeita o cabelo e empina a bundinha. O aparelho móvel vibra em sua bolsa de camurça.
- oi Vê, já estou chegando, beijo.
A perfumada garota caminha para o elevador e treina reboladas suicidas. Diante da porta metálica, aperta um botão no painel embaçado. Observa o contador digital retroagir lentamente: 8º andar, 7º andar, 6º andar, 5º andar, a porta se abre.
- boa noite.
No canto do encardido cubículo um morador do sétimo se entorpece com o perfume extraído de raízes japonesas, uma espécie de sândalo oriental, enquanto a ruivinha imagina o que a noite lhe poderá proporcionar.
- boa noite, querido...uma boa noite de verdade!!!!
Ela sabe que a noite do sujeito vai ser uma droga. Ela sabe que a sua horrenda esposa, estupidamente obesa, cabelos tingidos por uma substância artificial, com suas lacunas amplamente alargadas pelo tempo, tudo isso, sobre uma cama de sucupira lá dos idos de um mil novecentos e oitenta e seis, com aquela camisola ridícula, com aquelas tetas que se assemelham a luvas de borracha infladas, não pode ser uma boa noite. O seu espírito de caçadora, os seus hormônios recônditos, a sua boca miúda, a sua calcinha de renda com dizeres em relevo, a sua volúpia... ela sabe que a noite do infeliz vai se resumir a uma ginástica impregnada por essências mal-cheirosas e, por isso, tem compaixão pelo rapaz. Vira-se de costas e sussurra:
- por favor, aperta o zíper da minha blusa...
Ela o sente se aproximando, enquanto o elevador patina sobre os trilhos engraxados, ela sente a ponta dos seus dedos semelhantes a uma lesma gelada, ela sorri, sacaneia, mordisca o canto da boca, ela ajeita a jaquetinha comprada no shopping do Barreiro.
- obrigada, meu anjo.
O indivíduo não fala nada, sua boca resigna-se a emitir um ruído ininteligível, um grunhido misto de prazer e frustração, um apelo desesperador. O cara, a poucos centímetros de uma Ferrari deve ser contentar com uma Variant 69, vazando óleo pelos cantos do velho apartamento e enchendo a paciência com os mais variados e inconvenientes comentários, ele deve se contentar com a sua mulher-tonelada, com a sua besta-feminina, com a sua cara-metade. Ele deve, simplesmente, apertar o zíper e mais nada. Ele deve cumprir a sua sina, freqüentar o corpo daquilo que um dia foi a realização de seu matrimônio.
- obrigada mesmo, viu? Não sei o que seria de mim sem você aqui...
Carol se compadece do sujeito, aliás qual a idade dele? Quantos sulcos deformaram a sua face desgastada? Quantas crateras fizeram das suas frustrações vários momentos de desgosto? Carol olha pra ele e ele, olha pro chão. Carol olha pra ele e o elevador dá um tranco momentâneo e as portas se abrem.
- Tchau, amor...
Ela sai. Ele fica. Ele, na verdade, não sabe nem pra onde deveria ir. Fica lá, no fundo do elevador mal-iluminado. Enquanto observa o quadril dancing da garota-Eva, sente-se invadido por um desespero súbito, por uma força absolutamente desprezível, ela rebola rumo às calçadas e ele, atracado ao elevador, emudecido, anestesiado. Lá dentro ainda resiste o cheiro daquela moça, lá dentro ainda habita os pesadelos da imensa esposa, lá dentro ainda vibra um corpo inconformado, lá dentro um espírito subtraído pelas imbecilidades do destino cobiça a menina que espalha perfume pelo saguão e, depois, pelo calçadão defronte ao prédio. O morador do sétimo não consegue forças para sequer apertar um maldito botão e manter as portas abertas, ele se sente como a última azeitona no fundo de um vidro de conservas, ele se sente uma sardinha estragada do Pacífico entremeio a salmões frescos apanhados no Norte dos Estados Unidos, ele se sente um micróbio diante de uma penicilina, ele se sente um nada. O perfume não lhe permite esboçar qualquer reação. A poucos metros, atrás de uma guarita de vidro, o porteiro observa-o, intrigado com a sua falta de estímulos ali. O pobre homem do sétimo percebe que suas mãos estão descontroladamente úmidas e a saliva recolhe-se sobre o palato, ele sabe que é impossível fugir da realidade, mas aquela garota .... Osmar está consciente de que aquela garota não é para o seu bico, está consciente de que aquele cardápio é muito caro para a sua inútil profissão de encarregado geral de um banco falido. Osmar observa o porteiro e, concomitantemente, o porteiro o observa. Eles trocam piscadelas rápidas, elétricas, comunicativas. O porteiro sabe o se passa na cabeça de Osmar e, por sua vez, Osmar não quer que o porteiro invada a sua desgraça particular. Osmar quer continuar sentido a presença da bela princesa, Osmar observa as portas metálicas se encaixando e o maldito elevador subindo lentamente. Ele consegue superar o seu estupor e faz a indigerível contagem regressiva:
- térreo, 1º andar, 2º andar, 3º andar...
Ele sabe que faltam apenas mais quatro pavimentos para a porta se abrir e, lá de fora, um ser horrível, com as pontas das unhas descascadas, dentes escuros, perfume detestável e creme insuportável, ele sabe que as portas se abrirão para a sua vida e a menina do elevador será coisa do passado. Osmar conta os segundos restantes e balança a cabeça de um lado para outro, ele se agita e tenta negar o seu futuro. A porta já vai se abrir e aquele bicho vai aparecer pra ele, vai se aproximar, vai perguntar se ele comprou quatrocentos gramas de mortadela e trezentos e cinqüenta gramas de mussarela, vai xingá-lo por causa do atraso, vai reclamar dos filhos, vai mijar de portas abertas, vai espremer um enorme cravo em suas costas enquanto estiver dormindo, vai acordá-lo durante um maravilhoso sonho e apontar-lhe aquela cratera peluda e disforme, e querendo ou não, sabe que deverá saborear aquilo como um urubu diante de uma carniça. Osmar sabe que é infeliz, Osmar cerra os dentes quando a luz do painel acusa o sétimo andar e as portas se abrem. Osmar sabe que a verdade dói muito e, deixar-se levar pela realidade, é suicídio. As portas se abrem, Osmar caminha pelo sétimo andar e enfia uma chave de cobre na maçaneta ondulada, enfia a chave na porta da realidade que está condenado a viver pelo resto dos seus anos. Enfia a chave e gira a maçaneta. Osmar sabe que o melhor remédio para uma realidade inaceitável é a relutância em aceitar coisas aparentemente simples e mentir pra si mesmo. Então ele entra no seu apartamento. Ao lado do fogão, o terrível monstro. Osmar sabe que a realidade não lhe trará boas noites de sono.
- Oi amor, a padaria estava fechada...
Osmar quer ser feliz, mesmo mentindo.
Desfilando no calçadão da Pinheiro, próxima ao Clube do Borracha, Carol atira o tôco de seu cigarro excessivamente marcado pelo batom numa lata de lixo. Ela ainda pensa no homem do sétimo andar, ela ainda esboça uma certa complacência pelo cara dos dedos de lesma e comportamento estranho. Enquanto desfila, desvencilha-se da foto do sujeito que paira sobre os seus cabelos lisos. No ponto de táxi, estica os dedos e espera pelo carro branco.
- boa noite. Por favor, boate Canudus.
- sim senhora.
Carol retoca o batom deformado pelo filtro do cigarro, ajeita as pernas sobre o estofado liso do carro com cheiro de novo.
Quinze minutos e o táxi atinge a lateral esquerda da boate. Uma enorme fila se forma na bilheteria e todo o inferno está armado: a noite do fim de semana é sempre assim. Carol paga vinte e três reais e quarenta e cinco centavos. Vinte e três redondos, negócio fechado com o motorista que a observa pelo retrovisor com olhar de canibal. Ela desce do carro, dá mais uma ajeita na roupa, confere o cabelo, coloca óculos de lentes amarelas e armação neon. Passa por uma lanchonete, um casal de bêbados e uma trupe de hipes. Mais a frente, Verônica e Paty.
- oi meninas... tudo de bom?
- você demorou... o que houve? – pergunta Paty.
- o trânsito táva péssimo. Vamos entrar?
Verônica logo sentencia, contaminada pela tpm:
- Paty, pega os ingressos, tô sem saco pra encarar isso hoje.
As três garotas se misturam na multidão que se acotovela em torno da discoteca, lentamente são conduzidas pelo fluxo de pessoas num vai-e-vem constante.
Carol aproxima-se do segurança, um indivíduo com características monstruosas, e oferece-lhe um cigarro. O outro aceita e vai logo querendo saber “a boa” da noite:
- e aí princesa, o que vai ser dessa vez?
- nada não, Rubão, nada não. Hoje é só pra espantar os maus espíritos. Ainda dentro tá muito lotado?
Rubão parece não ter pescoço. A sua coleção de músculos tomou todo o espaço do corpo e, lutando contra a maleabilidade de sua cabeça, ele olha por trás dos ombros para espiar a pista da discoteca.
- linda, aqui tem sempre lugar pra gente bonita assim.
Carol, embora alérgica a cantadas baratas, é uma velha amiga de Rubão. Certa vez, um engraçadinho mexeu onde não devia e o segurança/monstro lhe mostrou o quanto dói uma lesão nos testículos.
- Onde estão as suas amigas? – perguntou o grandalhão.
- Comprando os ingressos. Putz, hoje esse negócio tá o bicho!
Paty e Verônica se desvencilham da corrente humana e surgem, há alguns metros, da porta da boate. Enquanto isso, um homem narigudo passa por Paty e a observa por alguns segundos. Evita falar qualquer coisa, aliás, não há o que dizer para uma mulher desse naipe, simplesmente nada.
Pessoas vão, pessoas vêm, Vê e Paty, enfim, aparecem.
- vamos entrar? Tô seca numa dose. – disparou Paty.
Rubão, educadamente, abriu os braços, convidando-as para a pista, enquanto recolhia os bilhetes.
- boa diversão, garotas....
Ele sabe que alguma coisa vai rolar na noite, imprevisível é descobrir o quê exatamente.
“Essas gurias juntas... é, hoje o bicho vai pegar”
Verônica, precavida, volta-se a Rubão e pede-lhe referências sobre os taxistas da madrugada.
- preocupa não, linda, a gente arruma uma carroça legal.
Elas entram.
A pista, absolutamente lotada. Nos dois bares que abastecem o ambiente, dezenas e dezenas de seres iluminados pelos flashes e luzes multicoloridas. Elas entram e mantêm-se juntas, rentes a pista. A música é alta, muitos decibéis para poucos ouvidos, o batido nas caixas parece fazer vibrar todo o piso do quarteirão.
Verônica cutuca Paty e aponta para o bar do outro lado da pista. Ergue a cabeça e vai comprar algumas fichas, os conhecidos “kit-embriaguês”: uma dose disso, duas daquilo e mais uma da garrafa azul, isso sem falar das ampolas de eucalipto e mentol. Vê gasta três notas e compra para as amigas o consumo da noite inteira.
Impossibilitadas de dialogar no meio do barulho quase ensurdecedor, elas se comunicam através de gestos e dedos ágeis. Em um desses movimentos, Paty convida Carol para uma aquecida na pista. Elas caminham rumo à entrada da pista. Passam pelo corrimão preto, lentamente, e procuram por um lugar menos apertado. Por sorte, se aninham próximas a uma enorme caixa blindada que cospe o ódio de um DJ alucinado. Enfim, flexibilizam as suas cinturas. Enfim, dançam e espalham seus perfumes pelo ambiente enfumaçado. Dançam conforme o ritmo da música, deixam os corpos à vontade, soltas, rodopios e cotovelos no ar e balançam o cabelo. Verônika, colada na boca do bar número 2 observa as duas companheiras desfilando na passarela da inconveniência. Verônika curte os malabarismos excessivos de duas fêmeas, Vê assiste ao tempero vermelho atirado sobre uma macarronada quente. O barman, um japonês de longos cachos, cumprimenta Vê, também utilizando-se da linguagem não-oral. Ela retribui com um OK e pega a primeira rodada, ela sinaliza para o homem que preparou uma bomba para o trio de siamesas.
A pista salta. A pista pisca. A pista se estremece. Paty rebola. Carol se contorce. Alguns casais mais próximos são envolvidos pelas ondas invisíveis das garotas magnéticas. Homens compromissados perdem seus olhos nas órbitas da imaginação, namoradinhos aprendem como se executa um sex-dancing.
Verônika se aproxima e entrega a artilharia líquida às colegas. Elas seguram os copos incandescentes e, demonstrando uma agilidade circense, continuam requebrando sob o balanço da música. O DJ solta mais embalo. A bebida anestesia a garganta. O DJ abala a pista. O álcool é injetado lentamente no cérebro de três pequenas inconseqüentes. Mais duas giradas e o copo vazio vai ao chão. Mais uma rodada. Dessa vez, Carol enfrenta o bar número 1. Carol se direciona ao bar do mexicano Pablito, um metro e meio, cinqüenta e poucos quilos, nariz encorpado, enormes orelhas e um bigode enrolado. Pablito, o barman do bar número 1, prepara substâncias tóxicas para mentes atrofiadas, é um cara que combina coisas alcoólicas e consegue acomodá-las em um só copo. Pablito é o mago do bar número 1.
Carol se aproxima em ziguezague e mostra suas fichas. Pablito levanta o dedo indicador, perguntando mudamente “uma dose?”, enquanto Carol roda a sua mão no ar, respondendo “não, todas as doses numa só”. Então, o barman pega uma garrafa e a coloca debaixo do braço, mais uma debaixo do outro, mais outra na mão esquerda, por fim o copo na direita. Pablito dá uma rodopiada sobre o piso de mármore e se sacode junto com as garrafas, ele dança com os líquidos venenosos, ele encarna o espírito de um xavante preparando uma poção para uma tribo, ele torce a boca e vira os olhos, as garrafas se aquecem.
Depois, atira o copo sobre um lambri prata e .... cascata maravilhosa!!! A ampola está pronta. Pablito pega o copo com as duas mãos e conduz, gentilmente, à belíssima Carol, já muito afoita por um trago. Ela faz sinal de OK, “obrigada”. Carol agradece e conduz o copo ao batom vermelho, vampira, ela sorve a mistura homogênea gole a gole, ela deixa a garganta livre para a inoculação da vacina.
Pablito a observa atentamente. Há alguns meses, o barman mandou um indivíduo pro Pronto Socorro, mas, sabe que a menina a sua frente é “cabeça dura”, é “cobra criada”, é a “Carol”. A boquinha vermelha sorve tudo, Pablito sorri discretamente. Levanta novamente o dedo: “mais uma?”. Carol vira o copo vazio: “claro!!!”. Lá vai o mexicano executar a sua dança esquisita no piso do bar, o DJ coloca outro batidão.
A garota turbinada por produtos coloridos senta-se sobre uma mesa vazia, abre a bolsa em busca de um cigarro esquecido. “Quanta coisa nessa sacola, credo”, como todas as gurias da sua idade, Carol anda com objetos sem a menor utilidade plantados em sua bolsa inseparável. Acha o cigarro, encontra o fogo. Leva o tubo de fumos acondicionados aos lábios perfeitos. Prepara o isqueiro e... “pôxa, que cara babaca!”. Repentinamente, quase colado ao seu corpo, um rapaz lhe oferece fogo. Carol aceita para desvencilhar-se da enorme chama que crepita perto do seu nariz. Contrariando todos os princípios universais da sedução e da aproximação, o rapaz se oferece através do fogo, ele arde através das chamas, ele se serve numa bandeja nua, ele “é um babaca”.
- oi tudo bem??????
O carinha berra no ouvido direito de Carol, numa insistente tentativa de se fazer presente perto dela. Ela faz uma careta com o estampido em seu ouvido e faz um sinal de OK. Carol não gostou nem um pouco do sujeito, ainda mais pelo tipo esquisito dele: cabelos engomados, calça jeans colada, um penduricalho de ouro no pescoço, brincos no lóbulo esquerdo.
- você vem sempre aqui????
O carinha se aproxima e berra novamente. O seu hálito de cervejeiro é evidente, o seu bafo, produto da fermentação de cereais, agride a profunda beleza da garota. Carol olha pra pista. Verônika e Paty dançam. Elas se esculhambam na pista... elas se estraçalham na pista... elas são a pista!!!!! E ela, próxima ao bar número um, recebe o sorriso amarelo de dentes cinza, ela, sob os efeitos primários da dose de Pablito tenta desvencilhar-se de um carinha babaca.
- v.....
Dessa vez, ela não se permitiu ouvir o que ele lhe dizia. Saiu pela direita, espremendo seu corpo-violão entre casais que se beijam freneticamente. Atrás dela, o cara babaca. Carol encosta-se no balcão e Pablito traz a segunda ampola. O cara aterrissa ao lado, sorri novamente e pisca o olho esquerdo.
- “puts, que cara babaca!!!”
Pablito observa a reação selvagem de Carol. O cara babaca faz um sinal para Pablito, pedindo uma dose também. Pablito levanta os ombros e olha pra Carol, perguntando “você vai tomar uma com esse cara?”. Ela pensa por alguns instantes, micro-instantes. Ela, ofídica, retribui os ombros levantados por Pablito. Ele entende tudo. Roda sobre os pés, vai às garrafas, escolhe cinco, agita, dança, pula, grita, dobra os joelhos e atira o copo sobre o balcão: líquido vermelho.
Carol pega o dispositivo vermelho e o entrega ao cara babaca. Ele pega o copo. Ainda sorri, ainda gesticula com a cabeça acompanhando o ritmo da música. Carol, apoiada no balcão do bar número um, prepara-se para atacar o cara babaca número zero. Carol leva aos lábios a sua segunda ampola... o outro faz o mesmo com a sua primeira dose. Ele dispara, ela digere. Ele acelera, ela ameniza. Pablito pensa com seus botões: “o cara se fudeu!”.
O espírito vulcânico de Carol funciona como o mecanismo de uma ampulheta... à medida em que o tempo passa, o prazo se esvai, não há mais como pará-la. Ela, diante do cara babaca sorridente, levanta o dedo e sugere, assassina, “mais uma??”. O infeliz concorda, e Pablito se retorce novamente. Duas novas doses prontas, dois outros arremessos, duas catapultas, dois anestésicos mentais. Carol pega e bebe. O cara babaca pega e vira. Dedo no ar e “mais uma dose”, dessa vez, o indicador do homem dos brinquinhos de prata falsificada. Ele quer mais uma rodada. Pablito já fica perto do balcão, com suas garrafas subcutâneas. O barman passa as mãos pelo bigode saudita enquanto masca algo viscoso. Pablito olha para Carol e insinua com os olhos “tem certeza?”. Ela apenas assente com a cabeça. Ela apenas concorda com a irresponsabilidade alcoólica, ela simplesmente subtrai a consciência do homem babaca. E o DJ despeja uma coleção de sons, as caixas cuspindo fogo. Verônika e Paty sobem ao bar número 2, “onde está Carol”? Odako, o barman japonês desse território as avisa que a outra garota não passou por ali nos últimos minutos. Vê e Paty penetram na multidão em torno da pista, elas se espremem e chegam ao banheiro. Uma mulher gorda com um crachá vermelho monta guarda logo na entrada. A dupla passa por ela e alcança o interior do fétido ambiente. Pelo espelho, Paty observa os seus longos cabelos loiros ensopados sobre a pele dourada, Paty curte o visual selvagem de um corpo dancing. Verônika faz xixi e acende um cigarro.
- Onde será que ela se meteu?? pergunta Paty.
Verônika ajeita o sutiã, coloca o cigarro na beirada da pia de mármore, solta uma baforada e molha o rosto.
- Não sei, deve estar estragando alguém por aí...
Elas riem enquanto a água gelada escorre por sobre os seios de Verônika. Paty, com um pedaço de papel higiênico rosa, elimina o batom vermelho, exibindo seus carnudos lábios corados.
- Estou no “rango”. Quero comer um “sandu”. Vamos lá no Trailer do Raposão.
- Vamos.
Elas saem e passam pela segurança, a mulher/homem esquisita. De novo no meio da confusão, empurra-empurra, cotoveladas, vai-e-vem e chega-pra-lá. A boate é um inferninho underground, é local onde todos se misturam em busca de um auto-reconhecimento, em busca de um anonimato e perda de personalidade. Lá fora muitos são homens, aqui dentro, gays. Lá fora muitas são santas, aqui, profissionais. Todo dancing é assim, não tem graça andar ao lado da pista sem um corpo relando daqui e dali numa profusão, num excesso na liberalidade da libido, uma perversão plena.
Elas andam juntas, coladas, mãos dadas, corpos rentes. Passam por casais de gays, casais de casados, casais de namorados, casais de coisas, casais de gente sozinha. Passam pelo bar número 2, avançam sobre a passarela de vidro, atingem o guarda-volume e vencem a portaria.
- Rubão, brother, você viu Carol?
Rubão vira-se num sobressalto:
- Gata, vi não. Vocês se perderam???
- É, ela estava no bar, mas, pode deixar, vamos lá no Pablito.
E dá-lhe mais gente dançando. Elas passam por outro lado agora, na trilha dos ambientes reservados. Sobem por uma pequena escada, viram à direita, contornam uma pilastra verde e chegam ao reservado. Ali, todo mundo é todo mundo. A fumaça do ambiente cria uma neblina de álcool, nicotina, essências e substâncias diversas. Continuam andando e passam por outra pilastra, agora, rosa. Verônika pára subitamente e cutuca a amiga.
- Olha ela lá!
Carol apóia-se no ombro de Verônika e as duas contemplam a amiga encostada no balcão do bar número 1. Os olhos das felinas observam Paty, um cara e um monte de copos vazios. A dupla sabe muito bem o que aquilo significa. Então, Carol puxa Verônika pela mão direita e caminha na direção oposta ao reservado. Elas passam novamente pelas pilastras e contornam a pista.
- E aí? Ela já deve estar chapada!!!
- Vê, parece que ela está acompanhada.
- Mas, será? Ela não curte aquele tipo lá! – retrucou Verônika.
- Ah, sei lá, de repente... vamos tomar uma no Odako e depois chamar um táxi. Se Paty quiser, pode ficar por aqui.
- Beleza, então tá.
As mão se entrelaçam e as garotas dirigem ao bar número 2. No bar número 1, o cara babaca, Estefânio, Tetê para os amigos, ingere desenfreadamente tudo o que cai no copo. Tetê solta dois botões de sua camisa esquisita porque o calor começa a ferver a seu pescoço. Paty, agora sorri, exibindo uma fileira de dentes impecáveis, ela sorri mostrando suas presas de ataque. Tetê está feliz. Brigou com a namorada ontem, conseguiu emprego numa oficina mecânica perto da sua casa e comprou uma bicicleta nova. Tetê está muito feliz porque agora está se embriagando com uma mulher lindíssima, meio índia meio morena, Tetê é o garanhão da noite. Ele sabe que ela, agora, está muito mais fácil, depois de tantos tragos o cérebro da menina deve estar em frangalhos e, daqui a pouco, é só chamá-la para uma volta e depois conseguir um táxi rumo a algum motelzinho. Tetê sente-se como o desbravador da noite, o raposão, o dominador. Carol apenas olha, vez em quando pisca. Acende um cigarro. Observa o cara babaca. “Está na hora”, decide ela. Afasta-se do balcão e Pablito recolhe os copos. Ela é sempre assim, gosta de colecionar os invólucros das bebidas, gosta de manter por perto os torpedos vazios que jazem sobre o balcão. Total de aplicações: doze. Onze pra cada. “Agora está na hora da diversão” sentencia Carol. Pega na mão do rapaz e o leva atrás de si, apressadamente. Pablito deduz: “coitado”. Ela anda rapidamente, com uma agilidade impressionante, ziguezagueante, enlouquecedora. Estefânio deixa-se levar pela mulher foguete, Estefânio está feliz. A cada nova mudança de rumo, ele caminha mais rapidamente. Uma volta em torno da pista. Duas. Três. Ele sua muito, dois botões são estourados violentamente pela mão que está livre, a esquerda. Tetê precisa de mais oxigênio, sou corpo está fervendo. Sua cabeça ergue-se um pouco mais e as luzes que espocam na pista geram em seu cérebro reações múltiplas. Numa explosão vermelha e amarela, ele consegue ver Angelita, sua namorada birrenta. Numa hecatombe roxo-azul visualiza sua recém-adquirida bicicleta de dezoito marchas. Ele está feliz. Seu corpo espirra líquidos como o de um leitão assado em brasas fumegantes. Mas, isso não faz a menor diferença; agora, uma deusa o conduz entre a multidão ululante, uma ninfa, uma tágide dancing é a grande conquista da sua noite. Tetê está feliz porque ele é um homem conquistador. Ele é o homem conquistador da noite. Ele é total, ele é “Estefânio, o ‘gostosão’”. Por isso, não larga a mão quente e suada da garota que o guia entremeio a galera, ele não abandona a fêmea, ela é mais uma mulher que caiu nas suas graças. Ele sente as pernas impulsionando o corpo, ele se sente teleguiado.
- Pôxa, você sumiu!!!! – berrou Verônika, no bar número 2.
- Estava divertindo um pouco. – respondeu Carol.
- Nó, estava no maior rango, agora, tomei umas e tô afim de sair daqui... – falou Paty.
- Espera aí, e o cara que estava contigo lá no Pablito??? – pergunta, intrigada, Verônika.
- Ele está rodando por aí... Daqui a pouco pára... Vamos embora...
As amigas se despedem de Odako, entregando-lhe o restante das fichas da noite. Passam pelo corredor do guarda-volume, contornam as pilastras, acenam para o DJ, dois beijinhos numa amiga de jeans rosa muito desbotado. Vencem a entrada do banheiro, e, enfim, a portaria. Rubão, de costas, contém dois rapazes exaltados alcoolicamente.
- “Migão”, chama um carro pra gente.
Rubão deixa os dois rapazes se arrebentado na lateral da boate e vai ao meio da rua. Gesticula com os braços. Ao longe, faróis se acendem e um carro arranca. O segurança volta à entrada e abre um espaço para as donzelas suadas passarem. O carro estaciona, uma porta se abre. Elas entram. Primeiro Verônika, depois Carol e, por último, Paty. Elas se acomodam no assento traseiro do carro branco. Verônika deita sua cabeça sobre as pernas de Carol.
- O que vocês beberam lá dentro?
- Muita coisa – responde Carol, sinistramente.
- Muita coisa, o quê? – insiste Paty.
- Comecei com uma dose de batida com menta e depois o Pablito fez um suco de goiaba e limão... estava ótimo. – respondeu a menina-índia.
- E o cara? – pergunta Paty – o que o Pablito fez pra ele?
- Não vi direito, mas, acho que deve ser uma mistura daquelas tequilas com uísque, vodka e rum.
Elas gargalham. O carro arranca. A rua continua lotada, as pessoas estão dancing. O bairro está dancing.
- Onde vamos? – pergunta o motorista.
Elas passam o endereço. O carro vira aqui e pega uma avenida mal iluminada. Verônika apaga sobre as pernas da amiga, a TPM foi embora. São umas poucas horas na madrugada.Na boate, Estefânio anda em torno da pista, segurando alucinadamente a mão de um alguém invisível. Ele se sente especial, pleno, todo, completo. No canto esquerdo da boca, uma saliva branca escorre pelo queixo barbeado. Seus olhos estão quase apontados para o teto do ambiente. Ele anda roboticamente, a música cadencia seus passos mecânicos. A cada quinze minutos Pablito vê o sujeito passar sorrindo. Ele conclui que “esse foguete colou legal, semana que vem a indiazinha pega outro otário”. Estefânio não sente as pernas, não sente a língua, não sente nada. Ele é o produto de uma investida mal sucedida, ele é o cara número zero a bordo do bar número um, ele é, simplesmente, um cara babaca. Às três e pouco, Tetê tomba diante da pilastra rosa, seu corpo desaba no mármore marrom, seus olhos estatelados fecham-se.

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